quinta-feira, 10 de outubro de 2013

Vinicius de Moraes: A Mulher em Jeito de Poesia

A Brusca Poesia da Mulher

Minha mãe, alisa de minha
fronte todas as cicatrizes do
passado
Minha irmã, conta-me histórias
da infância em que eu haja
sido
herói sem mácula
meu irmão, verifica-me a
pressão, o colesterol, a
turvação do timol, a
bilirrubina
Maria, prepara-me uma dieta
baixa em calorias, preciso
perder cinco
quilos
Chamem-me a massagista, o
florista, o amigo fiel para as
confidências
E comprem bastante papel,
quero todas as minhas
esferográficas
Alinhadas sobre a mesa, as
pontas prestes à poesia.
Eis que se anuncia de modo
sumamente grave
A vinda da mulher amada, de
cuja fragrância
já me chega o rastro.
É ela uma menina, parece de
plumas
E seu canto inaudível
acompanha desde muito a
migração dos
ventos
Empós meu canto. É ela uma
menina.
Como um jovem pássaro, uma
súbita e lenta dançarina
Que para mim caminha em
pontas, os braços suplicantes
Do meu amor em solidão. Sim,eis que os arautos
Da descrença começam a
encapuçar-se em negros mantos
Para cantar seus requiens e
os falsos profetas
A ganhar rapidamente os
logradouros para gritar suas
mentiras
Mas nada a detém; ela avança, rigorosa
Em rodopios nítidos
Criando vácuos onde morrem
as aves
Seu corpo, pouco a pouco
Abre-se em pétalas... Ei-la que
vem vindo
Como uma escura rosa
voltejante
Surgida de um jardim imenso
em trevas.
Ela vem vindo... Desnudai-me,
aversos!
Lavai-me, chuvas! Enxugai-
me, ventos!
Alvoroçai-me, auroras
nascituras!
Eis que chega de longe, como
a estrela
De longe como o tempo
A minha amada última!

Vinicius de Moraes



Di Cavalcanti, O Nascimento de Vénus, 1940.

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